Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: o custo da falta de gestão de risco e planejamento
- Marcelo Bevilacqua

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Por Marcelo Bevilacqua*
No começo do século XX, o Brasil vivia uma febre de progresso. A Amazônia produzia quase toda a borracha do mundo, o que atraía investidores, diplomatas e engenheiros dos quatro cantos. Era tempo de grandes obras, de tecnologia avançando a passos largos, de acreditar que bastava ter vontade pra vencer qualquer obstáculo. Foi nesse cenário que nasceu a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, uma ferrovia que ligaria o interior da Amazônia aos portos de exportação e colocaria o Brasil no mapa do desenvolvimento sul-americano.

O plano parecia simples, 360km de trilhos entre Porto Velho e Guajará-Mirim, contornando as cachoeiras do rio Madeira pra escoar a borracha boliviana até o Oceano Atlântico. O Tratado de Petrópolis, de 1903, foi bem mais que um acordo diplomático. Era quase uma promessa de modernidade, mas o que começou como ambição virou uma das maiores demonstrações de gestão de risco malfeita da nossa história.
A Madeira-Mamoré custou fortunas, vidas e reputações. O legado que deixou sobre o que acontece quando falta planejamento em projetos grandiosos ainda vale hoje, tanto no mundo corporativo quanto na economia.
Quando a pressa atropela o planejamento
A ferrovia nasceu de pressa política e com pouca base técnica. A urgência em cumprir o acordo com a Bolívia e a pressão por resultados rápidos passaram por cima de qualquer racionalidade. O consórcio americano contratado achava que bastaria dinheiro e mão de obra pra vencer a floresta. Deu errado, o canteiro de obras foi devastado por doenças tropicais, acidentes, problemas logísticos e desorganização.
Mais de seis mil trabalhadores morreram durante a construção. Vieram de mais de cinquenta países, sem triagem médica, sem estrutura sanitária, sem comando unificado. A obra virou tragédia humana e financeira. Hoje nenhuma análise de viabilidade aprovaria algo assim. Mas na época a crença cega no progresso dispensava prudência.
Usando vocabulário empresarial atual, o projeto falhou em todas as etapas da gestão de risco, não avaliaram o ambiente, não previram custos direito, não controlaram recursos humanos, não tinham plano B, tomavam decisões reagindo a crises, nunca de forma preventiva. Gestão reativa pura.
O investimento que já nasceu velho
Quando ficou pronta em 1912, a Madeira-Mamoré já estava ultrapassada. O ciclo da borracha — a razão de existir da ferrovia — tinha acabado. As plantações asiáticas, mais baratas e produtivas, tinham tomado o mercado mundial. Os mais de 30 milhões de dólares investidos (uma fortuna na época) jamais voltariam.
O caso mostra um erro que se repete, confundir entusiasmo com estratégia. Muitos projetos, públicos ou privados, nascem de discursos bonitos de inovação, mas sem análise real de mercado, sem diagnóstico de risco, sem estrutura pra executar. A Madeira-Mamoré é retrato perfeito de investimento baseado em idealismo, não em inteligência econômica.
Esse erro não ficou no passado. Empresas modernas cometem as mesmas falhas ao iniciar transformações digitais, fusões, expansões internacionais ou mudanças estratégicas sem entender direito o ambiente onde estão. Assim como os engenheiros subestimaram a floresta, tem gestor que subestima a complexidade do próprio mercado.
O custo de ignorar as variáveis
Do ponto de vista econômico, o fracasso da Madeira-Mamoré expõe o que custa ignorar fatores externos. O ambiente amazônico, as doenças, o isolamento, o declínio da borracha, tudo previsível. Bastava análise mais cuidadosa pra antecipar os riscos. Mas o modelo de gestão era linear, típico do pensamento da época, planejar, executar e colher resultados. Em ambientes complexos essa lógica não funciona.
A mesma coisa acontece em mercados voláteis, principalmente tecnologia, energia e finanças. O risco é dinâmico, não estático. Ignorá-lo abre espaço pro caos. A lição da Madeira-Mamoré é direta, risco não se elimina, se administra. E administrar risco não é só ter um departamento, é criar cultura.
Empresas que entendem isso transformam riscos em vantagem competitiva. Criam sistemas de antecipação, investem em dados, valorizam equipes diversas e desenvolvem líderes que sabem decidir sob incerteza. As que não fazem isso acabam como a ferrovia, soterradas por fatores que poderiam ter sido previstos.
Governança, o centro que não existiu
A história da Madeira-Mamoré mostra o que acontece quando falta governança. O projeto tinha vários centros de poder, conflitos entre investidores, falhas de comunicação e nenhuma liderança clara. Em termos corporativos, é como um conglomerado sem alinhamento estratégico.
Essa falta de governança transformou o canteiro numa bagunça de decisões contraditórias. Alguns engenheiros insistiam em técnicas americanas inadequadas ao clima tropical. Outros tentavam improvisar soluções locais sem coordenação, resultando em desperdício de recursos, retrabalho e perda total de controle sobre prazos. Hoje isso seria comparável a grandes empresas com estruturas matriciais confusas, onde cada departamento age por conta própria, desconectado da estratégia geral. Sem centro de comando claro, a execução se fragmenta e os riscos se multiplicam.
A ferrovia prova que governança é, antes de tudo, coerência organizacional. Não basta ter recursos, tecnologia e ambição, precisa ter propósito claro, papéis bem definidos e disciplina estratégica.
O que sobrou e o que aprendemos
Mais de um século depois, a floresta engoliu quase tudo, trilhos, estações e máquinas. O que restou é monumento à ousadia e ao erro. Mas a ruína da Madeira-Mamoré não é só lembrança do passado, é um alerta que não envelhece.
A gestão moderna costuma associar sucesso à velocidade. Mas a história ensina que a verdadeira vantagem está em pensar antes de agir. Planejar não freia inovação, sustenta ela. Nenhuma organização sobrevive só com coragem, é o planejamento que transforma coragem em resultado.
Transpondo isso pro presente, a selva amazônica com suas doenças e imprevisibilidade vira metáfora do ambiente econômico global. O gestor que entra nesse território sem mapa, confiando só na intuição, repete o destino da ferrovia, se perde, mesmo tendo os melhores recursos.
A Madeira-Mamoré não é só história sobre ferrovia, é tratado sobre estratégia. Retrato do que acontece quando o desejo de progresso ultrapassa a prudência. O que se constrói sem planejamento pode impressionar no início, mas tende a ruir antes de cumprir seu propósito.
A maior lição que a Madeira-Mamoré oferece é que visão e execução precisam andar juntas. Visão sem estrutura vira devaneio. Execução sem direção vira desperdício. O equilíbrio entre sonho e método separa projetos duradouros de fracassos prematuros.
A floresta amazônica venceu a ferrovia, mas o verdadeiro inimigo não foi a natureza, foi o despreparo humano. No universo empresarial essa verdade permanece, não é o risco que destrói organizações, é a arrogância de ignorá-lo.
Planejar, entender o ambiente, calcular variáveis e respeitar limites mantém qualquer empresa de pé. A Madeira-Mamoré, em toda sua grandiosidade e tragédia, continua sendo lembrete de que boa gestão não é a arte de improvisar o impossível, mas a ciência de tornar o possível sustentável.
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*Marcelo Bevilacqua, Administrador de Empresas, MBA em Gestão de Estratégica de Negócios e Pós Graduado em Psicologia do Consumidor. Atua há mais de 20 anos como Consultor em Marketing Finance Business a frente da Atuar Consultoria e Marketing.






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