top of page

A borboleta e o enfermeiro

Por Luís Pissaia

Era maio, em meio ao veranico uma borboleta lutava para escapar do casulo. O esforço durou dois dias, exatamente os dias 30 e 31 e quando escapou do invólucro era noite, a escuridão tomava conta do espaço. Somente no outro dia que as suas belas asas verdes puderam ser notadas pelas pessoas. Perto dali, o bastante para partilhar do momento, nascia um menino, que pelas mãos de uma parteira abria os olhos ao mundo ainda antes de junho.


Imagem: Freepik

A borboleta testou as asas por algumas vezes, fortes elas alçaram voo e a levaram até uma grande janela de onde observava um pequeno Ser, frágil e inegavelmente estranho, o menino. Nesse momento o menino abriu os olhos e como uma atração ao belo verde das asas, ele fixou o olhar na borboleta. Por um instante, ambos observaram um ao outro, suas diferenças, seus anseios, suas expectativas e tiveram a certeza que fariam parte um da vida do outro.


O menino cresceu vigoroso, foi amamentado por treze meses, enquanto isso a borboleta passava o seu tempo nas margaridas do jardim. A amamentação foi tranquila, uma enfermeira auxiliou a mãe nos cuidados com as mamas, em fazer a prega, em segurar o menino no colo. A borboleta acompanhava atenta ao processo, do ombro da enfermeira pensava como aquilo era tão diferente do que ela conhecia. Seus dias de vida pareciam uma eternidade, enquanto o menino relutava em desenvolver.


Anos se passaram, e a borboleta quase queimou as asas com o calor das velas do bolo de aniversário de 15 anos do menino. Ela queria estar presente, gostava da bagunça que os adolescentes faziam. Voava entre aqueles Seres, tão diferentes, cada qual com uma cor de cabelo, tons diferentes de pele, gostos inusitados, a borboleta gostava de todos e estava acolhida na diversidade daquele espaço.


Aos 18 anos, quando o menino teve uma queda de bicicleta, a borboleta foi a primeira a chegar ao local e observar atentamente os arranhões e as pequenas gotículas de sangue que escorriam do seu joelho. Medo ela não sentiu, e sim a vontade de ajudar pairava sobre os pensamentos que nutria pelo menino. Admirava os enfermeiros que chegaram ao local de ambulância, pensou em entrar e ficou com medo do ar condicionado. Bisbilhotou pelas minúsculas janelas e concluiu como é ampla a variedade de equipamentos que esses Seres usam para ajudar as pessoas.


O colegial findou-se e o menino começou a sair de casa nas noites, a borboleta intrigada seguiu o ônibus que o pegava na frente de casa. A borboleta voou a uma distância nunca antes atingida. Esse lugar tinha grandes espelhos, ops, janelas que espelham as belas asas verdes. São altas, algumas janelas sobem até o céu. - Porque o menino gosta desse espaço? Questionou-se a borboleta por vários dias. Até que decidiu entrar no grande espelho.


A porta era grande, abria e fechava com a aproximação das pessoas. Esperta, a borboleta repousou no ombro do menino e o acompanhou até um espaço estranho. Sim, estranho! Moldes humanos, pedaços de corpos que eram de plástico, borracha e até de vidro. O menino brincava com aquelas peças, cortava, enfaixava, furava com agulha e até dava banho em alguns Seres de mentira. A borboleta observou que o menino usava uma capa branca, com um simples bordado verde sob o coração. O verde era igual ao das suas asas e contornava uma bela lamparina.


As noites se tornaram dias, meses e anos. Os prédios mudaram, os espaços tornaram-se mais intimistas e o menino deixava de brincar com os moldes e enfaixava, cortava, furava e dava banho em outras pessoas. Em alguns momentos a borboleta fugia. Tinha muito sangue na mesa e, em outras o cheiro era insuportável. Ela observava o sorriso no rosto do menino, mesmo que em ambientes tão diversos.


Um dia a borboleta ouviu os pais do menino conversarem sobre uma “formatura”. O que seria aquilo? – Pensou ela! Intrigada, acompanhou todos os passos, a organização das flores. Sim, tinham belas margaridas. Em um grande auditório a borboleta viu o menino vestindo outra capa, preta com detalhes verdes e estava a receber um prêmio. Em meio aos seus mestres, adjetivos foram aclamados, um belo juramento declamado ao público e ao final, o menino era um enfermeiro.


A borboleta não compreendia o que o menino fazia. Ele saia de casa ao amanhecer. Cedo da manhã ele fazia belos e simétricos curativos em algumas pessoas. - Elas precisam! Pensava a borboleta ao analisar o comportamento daqueles Seres. Ele almoçava rápido e a tarde conversava com mulheres grávidas. A borboleta lembrava da mãe do menino, com uma grande barriga e que a qualquer momento parecia abrir-se para um bebê vir ao mundo. As gestantes adoravam o menino, atentas ouviam o que ele falava e anotavam em um pequeno caderno.


O final da tarde vinha e o menino corria para o mesmo espaço em que brincava com os humanos anos atrás. Em salas gigantes cheias de outros meninos e meninas com capas brancas, ele falava, escrevia no quadro e orientava. A borboleta observava atentamente as falas do menino, que falava sobre as fases da vida, doenças, tratamentos e o que poderiam fazer para melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Vários foram os momentos em que a borboleta acompanhou o menino nos diferentes espaços. Os anos passaram rapidamente e as pessoas também. A mãe do menino foi morar no céu, disseram em um domingo pela manhã. Foram semanas de choro em que a borboleta não compreendia os motivos. Na televisão, o jornal anunciava um novo vírus, algo na China, a borboleta ouviu. A China é distante, pensou ela. Mas a geografia não foi respeitada pela Covid-19.


Covid-19, essa foi à causa da morte do vovô Mário e da vizinha Janete, ouviu a borboleta. O menino não saia de casa, somente trabalhava. Ele não transitava por vários espaços em um mesmo dia e sim ficava fechado em uma caixa de vidro, que nem a borboleta conseguia entrar. Um macacão com capuz branco, ele usava, além de uma máscara que escondia o belo sorriso.


A borboleta ficava sozinha, trancada em casa, e o verde de suas asas foi perdendo o brilho, tornando-se opaco. Ela ficou triste como nunca antes ficara e isolou-se sob a cômoda do quarto do menino. As margaridas pareciam distantes e a luz do sol incomodava. Foi em um dia frio de inverno que o menino voltou para casa mais cedo. Estava estranho, pálido e irritado. O menino deitou em sua cama. Estava exausto de cuidar de outras pessoas, seus pensamentos não eram bons. Os dias passaram e o menino não saiu da cama, a borboleta também não saiu da cômoda.


A noite envolveu a borboleta como o casulo que a abrigou no início da vida. A escuridão abraçou o menino, sufocando-o pouco a pouco. Em um único instante, a borboleta e o menino fixaram o olhar um no outro. O menino percebeu a borboleta e a borboleta percebeu o menino, ambos fundiram um ao outro, como corpo e alma que sempre foram. O dom de cuidar, o verde vívido de suas asas e a voz mansa dos seus conselhos reverbera pelas épocas. O silêncio abafou a escuridão, mas não o eco de bondade e a importância de ser enfermeiro.


Sobre o autor - *Enf. Me. Luís Felipe Pissaia  - COREN/RS 498541

Mestre e Doutorando em Ensino

Especialista em Gestão e Auditoria em Serviços da Saúde

Docente Universidade do Vale do Taquari - Univates 

Enfermeiro de Rel. Empresariais - Marketing e Relacionamento Unimed VTRP

bottom of page